Projeto

Onde vos retiver a beleza dum lugar, há um Deus que vos indica o caminho do espírito.

O programa “Caminhos da Memória – Memórias de Futuro”, desenvolvido no âmbito do projeto PRORURAL+, integra as funções de documentação, investigação e interpretação dos valores culturais e naturais do Corvo, contribuindo para reforçar a identidade cultural da comunidade, revitalizando a relação desta com o seu espaço geográfico - "espaço humanizado". Constitui, assim, um convite à exploração, à valorização e à vivência do património corvino na sua complexidade, evidenciando as interligações entre o património natural e o cultural (material e imaterial), histórico, paisagístico que derivam, no fundo, das formas que o corvino foi encontrando para se adaptar à ilha. Os elementos que compõem o património corvino não são apreendidos de uma forma atomizada, mas sim agregada num todo coerente que toma como pano de fundo a ilha e a linha do tempo da comunidade humana que a habitou, de forma contínua, ao longo de mais de cinco séculos.

O inventário participado que este programa materializa não é um trabalho de etnologia, pois que tem por objetivo o desenvolvimento local. Como nos recorda Hugues Varine, “para o etnólogo pouco importa que uma tradição esteja morta, contanto que seja conservada sobre um suporte durável e analisada cientificamente em nome do conhecimento.” No espírito e na finalidade deste programa, “o património imaterial faz parte integrante da cultura viva da população: sua materialização, sob a forma escrita ou audiovisual, é secundária. Na esteira deste pensador francês, o presente programa pressupõe a criação de “(…) um vaivém entre o processo de mudança e o de memorização que pode ser ativado pelo primeiro. Isso supõe várias condições:

  • Que os membros da comunidade tenham confiança em si próprios e consciência do valor de sua cultura e de seus saberes.
  • Que eles sejam permanentemente informados das mudanças que são capazes de influir em sua vida quotidiana, para poderem preparar- se e administrá-las.
  • Que as ações que levam a essas mudanças façam apelo o mais possível aos habitantes locais enquanto atores, para que possam nelas investir suas competências e seus saberes.

Ao invés de constatar um retorno automático aos “bons velhos tempos”, diante dos horrores de um mundo novo que não conseguimos controlar, provoca-se, assim, sem dúvida, um enriquecimento mútuo, e a cultura viva dos membros da comunidade, integrando o património global, permanece como o motor da mudança, ao invés de ser o seu freio.” (...)

Assim sendo, o património não pode ser concebido separado da vida quotidiana, “fora do chão”, praticamente sem relação com a população, com o território, com a vida: “O património, como recurso do desenvolvimento local, não pode ser visto fora dos ritmos da sociedade local, pois serve inicialmente para alguma coisa nas mãos de seus detentores habituais.”

A vocação do programa “Caminhos da Memória – Memórias do Futuro” é constituir-se como o programa âncora do património do Corvo. O seu sucesso dependerá fundamentalmente da geração de sub-programas mais circunscritos e incisivos que articulem ações que incidem simultaneamente nas dimensões material e imaterial da vida comunitária e que assegurem um processo dinâmico através do qual as pessoas do Corvo preservam, interpretam e gerem o seu património, tendo em vista um desenvolvimento sustentável. Sob pena de perderem eficácia, esses sub-programas não poderão ser soltos e esporádicos mas sim articulados e com algum grau de sistematicidade, de forma a gerar sinergias promotoras da prosperidade daqueles que protagonizam as ações visando a apropriação ativa e criativa de um património vivo, ao invés de o cristalizar numa redoma espácio-temporal. As mudanças sociais, tecnológicas e político-económicas implicaram uma progressiva debilitação de grande parte das manifestações culturais corvinas. Cabe à comunidade corvina determinar que património manter vivo e de que maneira o deverão fazer, tendo em vista a prosperidade das pessoas que integram essa mesma comunidade que não poderá deixar de abarcar todos aqueles que tendo partido encontram-se ainda profundamente ligados ao torrãozinho de terra de onde provêm.

Importa salientar que na materialização deste programa mobilizar-se-á constantemente discursos de natureza epistemológica distinta: o discurso científico (História, Arqueologia, Geografia, Geologia, etc.), cuja validação assenta essencialmente nas evidências empíricas e no respeito das metodologias academicamente estabelecidas, e as narrativas que resultam de uma construção social que a comunidade corvina protagonizou num longo e lento processo de construção identitária. Esse processo foi moldando, de forma seletiva, através da retenção de alguns elementos, do esquecimento de outros e do enriquecimento da memória com novos elementos que foram dando resposta aos sonhos e às ansiedades vividas por cada geração. Evidentemente, a validação destas narrativas da memória coletiva não é de índole gnosiológico, mas sim existencial, pois que é na vida que elas colhem legitimidade e sentido. As ciências – e não só as humanas - podem e devem ajudar o exercício hermenêutico de quem busca a inteligibilidade das paisagens, das memórias e dos discursos criados por uma comunidade. Elas não devem, porém, pretender substituir essas mesmas memórias consubstanciadas nas narrativas e nas práticas culturais.

 

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Nota bibliográfica: todas as citações de Hugues de Varine foram retiradas do seu livro “As Raízes do Futuro – O Património ao Serviço do Desenvolvimento Local”, editado pela Medianiz, Porto Alegre, Brasil, 2012.